Por Gabriela Florenzano
O Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) recomendaram, nesta última terça-feira, 15 de abril, a anulação imediata do contrato internacional de venda de créditos de carbono firmado entre o governo do Pará, por meio da Companhia de Ativos Ambientais e Participações do Pará (CAAPP), e uma coalizão internacional composta por países do norte global e grandes corporações multinacionais. Segundo os órgãos, o acordo fere a legislação federal ao configurar venda antecipada de ativos ambientais que ainda não existem juridicamente.
A recomendação é embasada na Lei nº 15.042/2024, que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). A norma proíbe expressamente a comercialização antecipada de créditos de carbono vinculados a períodos futuros, o que, segundo o MPF e o MPPA, é exatamente o que o contrato representa. O documento assinado entre a CAAPP e a coalizão coordenada pela iniciativa LEAF (Lowering Emissions by Accelerating Forest Finance) prevê a entrega futura de créditos de carbono ainda inexistentes, vinculados a um projeto ambiental que ainda está em fase de estruturação.
O acordo, anunciado em setembro de 2024 pelo governo do Pará, previa a venda de quase R$ 1 bilhão em créditos de carbono. A coalizão LEAF é integrada por governos como Estados Unidos, Reino Unido, Noruega e Coreia do Sul, além de megacorporações como Amazon, Bayer, Capgemini, BCG, H&M Group e Fundação Walmart. De acordo com os Ministérios Públicos, esse contrato coloca em risco o patrimônio ambiental do estado e representa um modelo de negociação incompatível com a legislação brasileira e os princípios da soberania socioambiental.
Na recomendação conjunta, os MPs alertam que os créditos de carbono florestais, por definição legal, têm natureza jurídica de “frutos civis”, ou seja, só podem ser comercializados após sua geração efetiva. Além disso, ao ingressarem no mercado financeiro, passam a ser considerados valores mobiliários, sujeitos à regulação específica. O contrato, no entanto, trata os créditos como commodities entregues por “ano safra”, ignorando a natureza intangível e infungível do ativo, o que contraria os marcos legais vigentes e banaliza o valor simbólico e ecológico desses territórios.
Outro ponto grave destacado na recomendação é que, conforme reconhecido pela própria Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas), o Projeto Redd+ Jurisdicional do estado, ao qual os créditos estão vinculados, ainda está em fase de construção. Isso significa que o contrato foi assinado antes mesmo de existir uma base técnica ou normativa consolidada para gerar os créditos supostamente vendidos, comprometendo a segurança jurídica e a credibilidade do processo.
A recomendação também destaca diversas irregularidades no processo de formulação e negociação do contrato, incluindo a ausência de consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas e tradicionais afetadas, em descumprimento à Convenção 169 da OIT e a outras normativas internacionais e nacionais de direitos coletivos.
De acordo com os MPs, a falta de informações públicas acessíveis, somada à pressa do governo estadual para viabilizar o sistema, favorece práticas assediosas e especulativas. O documento menciona, ainda, manifestações de repúdio de organizações da sociedade civil, que classificam o modelo adotado como “rentista e colonialista”, por se apoiar em instrumentos financeiros que desconsideram os impactos sociais, culturais e ambientais sobre os povos originários e populações tradicionais da floresta.
Outro aspecto apontado como problemático é a possibilidade de revenda dos créditos por parte da coalizão internacional, inclusive para outros entes corporativos e soberanos, sem qualquer tipo de regulação nacional sobre essas operações secundárias. Segundo os Ministérios Públicos, esse cenário amplia a especulação no mercado de carbono e transfere o controle sobre recursos ambientais estratégicos da Amazônia para atores estrangeiros.
A recomendação ainda chama atenção para o fato de que são governos e empresas do norte global — historicamente responsáveis pela crise climática — que estão determinando o valor da tonelada de carbono das florestas paraenses, ignorando os custos sociais e ambientais que a gestão desses territórios impõe ao estado e às comunidades locais. “A valoração do carbono florestal não pode se dar exclusivamente em termos de mercado, nem ser dissociada dos direitos e modos de vida dos povos que habitam e protegem esses territórios”, pontuam os MPs.
Recomendações ministeriais são instrumentos formais utilizados para prevenir irregularidades ou corrigir condutas sem necessidade de ação judicial. Embora não tenham caráter obrigatório, configuram uma orientação jurídica qualificada, que busca resolver conflitos por meio do diálogo e do cumprimento voluntário das normas.
Neste caso específico, o MPF e o MPPA estipularam um prazo de dez dias úteis para que o governo do Pará e a CAAPP comuniquem a decisão administrativa sobre a adoção das medidas recomendadas, ou seja, a anulação do contrato firmado com a LEAF. Uma cópia da recomendação também foi enviada à organização internacional coordenadora da coalizão.
Caso o governo parauara não acate a recomendação, os Ministérios Públicos poderão adotar medidas judiciais para resguardar o interesse público, o patrimônio ambiental e os direitos das populações afetadas.